Thursday 3 September 2009

nenhum dia como outro qualquer

São quase onze e meia da manhã. Estou em meu quarto escrevendo esta primeira postagem do meu novo blog. Daqui a quarenta minutos tenho que sair, não sem antes tomar um banho. Tomarei um ônibus e saltarei em Putney, sudoeste de Londres. Da parada de ônibus caminharei vinte ou trinta minutos até um hospital. Soa simples e prosaico. Quantas pessoas neste planeta Terra irão fazer ou já fizeram algo mais ou menos idêntico no dia de hoje? Bilhões de pessoas, eu imagino. Só em Londres, entre sete e nove da manhã, milhões de pessoas banharam-se, vestiram-se, tomaram um ônibus e caminharam o que tiveram de caminhar para chegarem aos seus locais de trabalho. Por quê mencionar algo tão óbvio e comum?

Quando chegar ao hospital assinarei um livro para visitantes na recepção, depois de dizer ao mesmo senhor negro sentado atrás do mesmo balcão a mesma coisa de sempre: que sou um intérprete e tenho uma hora marcada na unidade de lesões cerebrais, e ele, como sempre, irá dar-me um crachá, e antes que eu alcance o primeiro corredor que terei de percorrer, ele irá chamar-me, porque como sempre eu terei esquecido de usar o desinfetante de mãos. Quando finalmente essa primeira etapa vagamente cômica estiver completada, eu encaminharei-me pelos corredores desse belo prédio vitoriano até a unidade de lesões cerebrais, que fica no próximo andar acima. Eu preferirei subir as escadas.

Estarei aqui para ajudar uma terapêuta ocupacional a comunicar-se com uma conterrânea minha, para quem as coisas óbvias e comuns do meu primeiro parágrafo tornaram-se impossibilidades. Uma moça que, com pouco mais de vinte anos de idade, encontra-se viva quase que por milagre. Na parede de seu quarto de hospital vêem-se imagens de alguém visivelmente feliz. Uma vida que, sem dúvida, morreu, ainda que quem a viveu siga vivendo: o acidente de moto um ano atrás teve consequências dramáticas e irreversíveis para ela. Essa moça é capaz de fazer pequeníssimos movimentos, como levantar um dedo e piscar os olhos, mas mesmo esses movimentos não são completamente controláveis por ela. Mas pelo menos ela muitas vezes consegue dizer sim através de levantar e abaixar o dedo idicador da mão direita. A esperança é que um dia seja possível estabelecer algum grau de comunicação com esse jovem e bonito ser humano.

Quando sair do hospital, tendo esquecido de devolver o crachá para o senhor negro, que também não irá lembrar de pedi-lo e dirá ‘bye bye’, caminharei para o ponto de ônibus como sempre mais intensamente convencido de minha sorte. O fato de eu existir é, em si, mais sortudo do que ganhar na loteria. O número de possíveis seres humanos que poderiam ter sido gerados em meu lugar é, para roubar (não sei se exatamente) a frase de um famoso biólogo, maior do que o número de grãos de areia em uma praia. O fato de eu estar a ponto de completar quarenta e um anos de idade me faz mais sortudo do que a grande maioria das pessoas que tiveram a chance de existir até hoje. Sempre que visito essa paciente sou forçado a lembrar dessas coisas. Reflito e concluo que qualquer reclamação que venha a sair da minha boca no futuro deveria no mínimo ser construtiva. Sinto também que tenho tantos motivos para sentir gratidão que nehuma amargura pode ser justificada. São pensamentos um pouco estranhos, com aparência de ingenuidade, mas eu os penso outra vez e acho que são verdadeiros. Voltando ao futuro, quando chegar ao ponto de onibus preferirei voltar pra casa caminhando, já que parte do percurso de uma hora e meia é um caminho de terra, às margens do Tâmisa. Nao deixa de ser uma maneira de dizer obrigado.

2 comments:

  1. Primo, gostei muito dos seus dois primeiros textos. O primeiro é
    super comovente e diz muito sobre a vida e seus
    reais valores. Infelizmente existem muitas pessoas como esta moça
    que são privados de seus sentidos e de uma vida digna.
    Eu senti o segundo texto ainda como complemento do primeiro,
    pois fala da valorização da vida e das "pequenas grandes" coisas.
    É gostoso saber um pouco do seu dia-a-dia. Escrever todo dia é um grande desafio.
    Beijo, Dani

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