Saturday 10 October 2009

datagem de fósseis

Adquirir conhecimento é um prazer que freqüentemente leva ao auto-conhecimento. Estudar a Teoria da Evolução de Charles Darwin é saber porque existimos, e ter uma idéia do porque de algumas de nossas características. Hoje em dia, médicos de várias especialidades levam a Evolução das Espécies, sobretudo da nossa espécie, em consideração para tratar de doenças e problemas de saúde física e mental. Por exemplo, por quê muitas vezes temos esse sentimentos de que falta alguma coisa, esse sentimento de insatisfação? Psicólogos evolucionistas acreditam que tal sentimento tem suas vantagens evolucionárias. A vontade de mais conquistas pode levar a mais conquistas, e mais conquistas podem levar a melhores condições de vida, e portanto de sobrevivência e proliferação. Seres com um pedacinho de constituição genética que favorece um grau de insatisfação teriam, assim, uma chance estatisticamente maior de passar adiante essa característica.

Acabou de ser inaugurado o Darwin Centre, no Museu de História Natural de Londres. Pretendo ir visitá-lo em breve. Não irei sozinho. A pessoa que me acompanhará é um jovem brasileiro profundamente religioso. Temos em comum nossa diferença. Minha tarefa é convencê-lo do que a comunidade científica já se conveceu há muito tempo (o Papa também): Evolução é um Fato. Estipulamos dois pontos específicos. Primeiro, a datagem de fósseis. Os métodos que temos de datagem de fósseis são confiáveis? Segundo, a questão dos famosos fósseis intermediários, que mostram a transição de, por exemplo, répteis a mamíferos.

Ofereci a ele o texto que reproduzo abaixo.



Esse é um resumo de um artigo escrito por Michael Benton, Ph.D., cátedro de Paleontologia de Vertebrados da Universidade de Bristol. O artigo encontra-se disponível em http://www.actionbioscience.org/evolution/benton.html?print . O artigo é aprovado pelo Instituto Americano de Ciências Biológicas. O artigo foi originalmente escrito em inglês.

• A compreensão atual da história da vida é provavelmente próxima à verdade, pois é baseada em testes e considerações repetidos.

• Há centenas de milhões de fósseis disponíveis ao público em caixas e gavetas no mundo inteiro.

• Fósseis aparecem em seqüências regulares repetidamente; deterioração radioativa ocorre e comparações de testes radiométricos variados confirmam sua validade.

• Seqüências constantes de fósseis foram determinadas muito antes de Charles Darwin sequer pensar na possibilidade de evolução. Os primeiros geólogos, nos séculos XVIII e XIX observaram que determinados grupos de fósseis eram sempre encontrados embaixo de outros determinados grupos de fósseis.

• Por volta de 1800, o inglês William Smith descobriu os primeiros princípios da estratigrafia: rochas mais antigas encontram-se embaixo de rochas mais recentes e fósseis aparecem em ordens fixas e previsíveis.

• Geólogos erigiram a coluna estratigráfica: era Jurássica, Cretáceo, Terciário e assim por diante. Cada unidade é caracterizada por fósseis específicos. O mesmo esquema foi confirmado no mundo todo sem exceção.

• A partir de 1830, geólogos observaram que os fósseis tornavam-se mais complicados com o tempo. As rochas mais antigas não continham fósseis, depois, em uma seqüência clara, vêm criaturas marinhas simples, depois mais complexas (como peixes), depois vida em terra firme, depois répteis, depois mamíferos e, finalmente, seres humanos.

• Em seu livro “A orígem das espécies” Charles Darwin explica como as espécies evoluiram.

• Paleontólogos vem buscando fósseis ativamente desde 1859. Nos últimos 150 anos todos os fósseis encontrados são compatíveis com a teoria de Darwin. Nenhum fóssil inesperado foi encontrado, como por exemplo fósseis humanos nos tempos dos dinossauros.

• Paleontólogos hoje em dia utilizam técnicas matemáticas para avaliar a qualidade da sucessão de fósseis. Não sabemos tudo, mas sabemos o suficiente. Biólogos têm à sua disposição diversas maneiras independentes de verificar a história da vida: não apenas através da ordem dos fósseis em rochas mas também através das árvores filogênicas.

• Árvores filogênicas são as árvores de famílias particulares de plantas e animais, e que mostram que todos os seres vivos são aparentados.

• Árvores filogênicas utilizam matematicamente listas morfológicas ou moleculares. A maioria dos casos testados conta a mesma estória, tanto no nível de fósseis como a nível molecular.

• Datagem em geologia pode ser relativa ou absoluta. Datagem relativa é feita observando fósseis, e métodos de datagem absoluta são todos baseados em deterioração radioativa.

• Certos elementos que ocorrem naturalmente são radiotivos e eles deterioram-se em velocidades previsíveis.

• Químicos medem o tempo que leva para que metade do elemento radioativo deteriore-se tornando-se uma forma estável do mesmo elemento (meia-vida).

• Através de comparar a proporção entre a forma inicial e a forma mais estável do mesmo elemento em uma amostra de rocha, e sabendo a velocidade de deterioração, a idade pode ser calculada.

• Datagens radiométricas pode ser feitas utilizando diversos elementos. Comparações de testes, muitas vezes realizados por laboratórios rivais, confirmam-se mutuamente.

• Atualizações são feitas de tempos em tempos. Desde 1960 a data do fim dos dinossauros foi continuamente confirmada: 65 milhões de anos. A margem de erro das técnicas modernas de datagem é 1%.

• Nós podemos ler a história da vida nas rochas com segurança.

Sunday 20 September 2009

o “gem” altruísta

Estou lendo um livro famoso chamado The Selfish Gene. Não sei se foi traduzido para o português. Eu procurei no google e não achei. É possível que eu tenha traduzido o título erroneamente, mas não consigo pensar em nenhuma outra alternativa para o óbvio O Gem Egoísta. Seu autor, o biólogo inglês Richard Dawkins, argumenta que gens são a unidade mais irredutível de hereditariedade no processo de seleção natural e, portanto, de evolução Darwiniana. Gens têm um objetivo único na vida: seguir vivendo em outros organismos futuros, de preferência eternamente. Nas páginas iniciais do livro, Dawkins oferece definições de egoísmo e altruísmo, para que, quando mais adiante, essas palavras cruciais para seu livro forem utilizadas, o leitor saiba exatamente ao que ele se refere. Sua definição é de altruísmo comportamental, e não altruísmo enquanto uma noção subjetiva. Quando um ser vivo, por exemplo, comporta-se de uma maneira que aumenta as chances de sobrevivência de outro animal às custas de suas próprias chances de sobrevivência, esse ser comporta-se de maneira altruísta. Comportamento egoísta seria o exato oposto.

Dawkins define gem como “qualquer porção de material cromossômico que potencialmente dura um número suficiente de gerações para servir como uma unidade de seleção natural[minha tradução]”. Gens existem dentro de organismos vivos, que perecem, mas passam seus gens adiante, contanto que consigam procriar. Ha dois riscos para os gens. O mais óbvio é a morte de um organismo antes de que haja produzido prole. Isso não leva necessariamente à “morte” de um gem, pois é possível (e muitas vezes provável) que o mesmo gem encontre-se presente em outros organismos mais bem sucedidos. O outro risco é o gem não “sobreviver” ao processo de procriação. Ou seja, no longo processo que leva à geração de um novo ser vivo há vários momentos em que, potencialmente, todo gem é passível de ser eliminado do campeonato da existência. A formação de óvulos e zigotos é o único instante em que os cromossomos de cada um dos pais misturam-se. Tomando o ser humano como exemplo, todos nós temos 46 cromossomos: 23 do pai e 23 da mãe. São linhas paralelas que não se misturam. Mas quando os óvulos e zigotos formam-se os cromossomos são embaralhados como cartas (comparação de Dawkins). Os 23 cromossomos do pai são um patchwork do DNA dos avós paternos, e o mesmo vale para a mãe. Porém, cada zigoto e cada óvulo são únicos. Daí os riscos iniciais para a sobrevivência dos gens no processos de procriação. Para finalizar esse argumento bem geral basta dizer que a concepção de um novo ser vivo é a maior de todas as loterias.

Vida de gem não é fácil. Do ponto de vista do gem, vale tudo. Gens colaboram uns com os outros, mas só se isso for útil para sua existência futura em outros organismos vivos, contruídos por gens. Dawkins argumenta que, dados esses fatos, egoísmo é uma vantagem para um gem.

Um dos méritos principais do livro The Selfish Gene é esclarecer para o público leigo certas obscuridades que aconteceram de propagar-se no que se refere à Teoria da Evolução. Evolução é um fato. Os fósseis coletados e datados até hoje e, sobretudo, a genética molecular não deixam dúvida. A outra parte, ou continuação, da teoria de Charles Darwin é Seleção Natural. A frase inteira é Evolução das Espécies por Seleção Natural. Ninguém (com a excessão de religiosos fundamentalistas e pessoas mal informadas) discute mais a validade da Teoria da Evolução. Mas Seleção Natural ainda encontra seus detratores mesmo dentro da comunidade científica. Devo acrescentar apenas que Seleção Natural segue sendo a mais resistente e duradoura de todas as teorias apresentadas, ou, em outras palavras, a melhor. O que Richard Dawkins busca transmitir aos seus leitores é do que consiste Seleção Natural. Vou resumir em uma sentença. A seleção natural que ocorre não é de indivíduos e tampouco de grupos de indivíduos, mas de gens. Se você é, digamos, alto ou tem olhos azuis, talvez considere que seus gens foram foram generosos com você. Não se iluda: seus gens não se importam com você. Tudo que eles querem é que você cresça e produza novos indivíduos. Sua morte, depois desse ponto, não será de maneira nenhuma sentida.

Ainda não acabei de ler o livro, mas tenho uma idéia de onde ele está indo. Do ponto de vista dos gens, egoísmo, como definido por Dawkins, é uma necessidade. Quando o que está em jogo é a sua sobrevivência – e sobrevivência é tudo que está em jogo – o gem não “pensa” duas vezes. Mas do ponto de vista de certos indivíduos esse nem sempre é o caso. Seleção Natural, impulsionada por minúsculas entidades egoístas, pode perfeitamente levar a altruísmo.

Muitos inimigos da Teoria da Evolução (inimizade à Teoria da Evolução é como inimizade ao fato do céu ser azul) argumentam que algumas das piores coisas que aconteceram na primeira metade do século vinte podem e devem ser associadas à Teoria da Evolução. A política eugênica de Adolf Hitler é o exemplo mais sinistro. Richard Dawkins escreveu e falou muito sobre o assunto. Vale a pena ler e ouvir. Por outro, lado basta dizer que Hitler era ignorante, além, obviamente, de todas as outras coisas que ele era também. The Selfish Gene oferece uma abordagem inteligente, sofisticada, bem informada e ocasionalmente humorística da questão da Teoria da Evolução versus moralidade. Há muito mais a ser dito. Muito mais foi dito: The Selfish Gene foi o primeiro livro que Dawkins escreveu. Desde então (1976) muitos outros seguriram-se. E, além do mais, há muitas outras pessoas coloborando nesse debate tão importante. É a minha novela da oito.

Thursday 10 September 2009

londres dos sebos

Charing Cross Road é uma rua conhecida por seus sebos. Um deles tornou-se título de um filme famoso: 84 Charing Cross Road. O título em português é bem menos interessante: Nunca Te Vi Sempre Te Amei. O filme, baseado em um livro que leva o mesmo título, conta a história verídica de uma mulher americana que encontra um anúncio no Saturday Review of Literarture, de um sebo em Charing Cross Road, e estando em busca de livros de literatura britânica que não consegue encontrar em Nova Iorque, contacta o sebo pela primeira vez em 1949. É o início de uma amizade de longa distância entre ela e o chefe de compras de Mark & Co, especializado em livros antigos. Quando essa mulher americana finalmente viaja a Londres para visitar o sebo é tarde demais para conhecer seu correspondente, que morreu em 1968.

No avião, a caminho de Londres, um anônimo companheiro de viagem lhe pergunta:

‘What kind of trip is it – business or pleasure?’

‘Unfinished business’

Negócio não concluido é a primeira versão em português que vem à cabeça, mas talvez negócio mal acabado seja mais adequado.

Eu me identifico ligeiramente com essa americana. Se me fosse permitida apenas uma definição de Londres, eu diria que é o melhor lugar do mundo para comprar livros de segunda mão. Os sebos de Charing Cross Road estão entre os melhores, mas os sebos de instituições de caridade, sobretudo Oxfam e Amnesty International, que podem ser encontrados em toda a cidade, são surpreendentemente ricos em títulos e bons preços.

Uns dois anos depois de minha chegada a Londres me foi confiada a tarefa de encontrar um livro chamado The Eagle and the Dove, de Vita Sackville-West. É um livro sobre as duas Teresas: Santa Teresa d’Ávila (the Eagle) e Santa Teresa de Lisieux (the Dove). A irmã mais velha de meu avô materno é uma pessoa intensamente religiosa e estava escrevendo um livro sobre as duas Teresas. Uma neta dessa tia-avó havia peneirado Nova Iorque atrás do livro de Sackville-West sem sucesso. Levando em conta que Vita Sackville-West era uma escritora inglesa, a alternativa mais óbvia era tentar encontrar o livro na Inglaterra. Eu aceitei o desafio com entusiasmo.

Primeiro tentei um sebo que não existe mais, em Holborn, de onde é possível ir a pé para Charing Cross Road. Não tendo encontrado o livro que buscava nesse sebo, que me havia sido recomendado, rumei para Charing Cross Road.

Não adiantava tentar 84 Charing Cross Road, pois não era mais uma livraria de livros de segunda mão. A maioria dos sebos na verdade está concentrada um pouco mais abaixo, perto de Leicester Square. Alguns dos sebos têm quatro andares, e para mim não estava muito claro em que categoria The Eagle and the Dove estaria. História? Religião? Biografia? Chegou um momento em que concluí que estava buscando uma agulha num palheiro. Eu não estava errado, e se não fosse minha boa sorte eu nunca teria cumprido minha missão satisfatoriamente. Já no início de minha busca eu me havia dado conta de que perguntar a livreiros sobre o livro era praticamente inútil. O livro estava fora de catálogo havia décadas, e ninguém jamais vinha em busca dele. Mas eu perguntava. E foi graças à minha determinação de seguir fazendo minha exótica pergunta que me deparei com uma resposta que foi quase como um segredo sussurrado em algum romance de caça a tesouros. O senhor careca com óculos redondos sentado atrás de uma mesa antiga em uma livraria de livros antigos e raros parecia um pouco espantado com minha pergunta:

‘Eu vi esse livro!’ ele respondeu, ‘Quinto Bookshop, na última sala subterrânea na prateleira no canto, bem no fundo’

‘Thank you very much for the information’

‘You are welcome’

E não é que dez minutos mais tarde The Eagle and the Dove estava finalmente em minhas mãos, diante de meus olhos? Uma edição de 1944 ou 1946, não lembro mais. Em uma das primeiras páginas havia um pedido de desculpas antecipado, algo como: Devido à guerra não foi possível incluir diversas fotografias que encontram-se arquivadas na França e na Espanha. Comprei o livrinho, que estava em ótimas condições. Depois de lê-lo enviei-o à Tia Graça.

Meu romance com os sebos londrinos segue tão apaixonado como nos tempos de outrora. Alguns títulos que obtive por uma fração do preço: Fables of Aesop, The Life and Opinions of Tristam Shandy, Gentleman (Laurence Sterne), Persuasion (Jane Austen), Madame Bovary (Gustave Flaubert – uma das melhores traduções para o inglês), The Heart of the Matter (Graham Greene), The Adventures of Augie March (Saul Bellow), Catch 22 (Joseph Heller), Lucky Jim (Kingsley Amis), Rabbit, Run (John Updike) e The God Delusion (Richard Dawkins). Na verdade, 80% dos meus livros – e eu devo ter uns duzentos – foram comprados em algum sebo ou em alguma loja de alguma instituição de caridade em Londres.

Minha viagem ainda é a negócio, que está longe de ser concluído e continua relativamente mal acabado. Sempre que releio algum livro que já li, às vezes mais de uma vez, sinto que minhas habilidades de leitor progrediram um pouco mais. Devo aos livros grande parte das minhas habilidades como intéprete e tradutor. Devo a eles também a maior fatia da minha visão do mundo, que é bem mais clara hoje em dia. Vale a pena.

Tuesday 8 September 2009

da falta de assunto

Quando eu decidi começar este blog, minha proposta era escrever uma postagem por dia. Tempo não seria problema, porque tenho uma tendência de acordar mais cedo do que preciso. Vontade também não falta. Escrever me dá prazer e eu gosto de ver uma nova postagem no meu blog. É a satisfação de realizar um pequeno trabalho do começo ao fim, como fazer um bolo ou lavar o carro. Mas quando sentei em frente ao laptop para escrever minha próxima postagem encontrei-me diante de um terrível empecilho: falta de assunto. Eu não tinha nada sobre o que escrever. Falta de assunto é, por necessidade, o assunto desta postagem.

Falta de assunto é a base de muitos setores da economia. Culto de celebridade é falta de assunto levada às últimas conseqüências. A manchete de hoje na primeira página do tablóide britânico The Mirror, que é um dos que têm maior circulação no país, é o divórcio de Katie e Peter. Katie Price, também conhecida como Jordan, é uma jovem com um rosto relativamente comum e seios que parece que vão estourar a qualquer momento de tão siliconizados. Peter é Peter Andre, um cantor pop. Acho que Peter Andre é australiano, mas não tenho certeza, e tampouco consigo forçar-me a procurar saber. Acho que os dois se conehceram no programa Big Brother, que é, por sua vez, um tipo de orgia de falta de assunto. Nunca nada com um grão de relevância chega perto de ser um assunto na casa onde o programa é filmado. Devo confessar que não assisto Big Brother, e que portanto pode ser que esteja errado, mas acredito que se Big Brother quebrasse a barreira da falta de assunto a imprensa não deixaria de anunciar. Todas as notícias do Big Brother são voluptuosamente triviais, e poucas coisas vendem mais tablóides, que são os jornais de maior circulação no Reino Unido da Grã-Bretanha e Irlanda do Norte.

Um assunto que à primeira vista tem aparência de assunto é política brasileira. Não vivo no Brasil e não costumo ler jornais brasileiros regularmente, mas basta uma ou duas notícias para ver que uma característica intrigante de nossa república segue inalterada: nossa república não é uma república. Não lembro das palavras exatas, mas aparentemente o beletrista e imortal senador José Sarney, ao ser contactado acho que por sua neta com relação a um posto público para seu xodó, disse que a moça não deveria se preocupar: um posto público já pertence ou está com sua família desde tempos imemoriais. É como se o cara tivesse aproveitando a oportunidade pra contar vantagem. E o pior é que parece que é verdade. Enfim, o senador, depois de uma quantidade suficiente de tempo ter passado, em que o fato foi levado ao conhecimento do país inteiro, continua senador. Não me espantaria se o tal posto público também continuasse com (ou na) família. Quando questionado, o presidente disse que não tinha nada a dizer. Assunto de família. Resumindo, o representante máximo da coisa pública brasileira não tem nada a dizer sobre o abuso da coisa pública brasileira – sobre o abuso do interesse público brasileiro, em português claro.

A república brasileira é e sempre foi uma contradição em termos. Zero em termos de assunto. Não quero transformar isso num assunto.

O outro aspecto interessante da falta de assunto é que falta de assunto encontra assunto em sua falta. A gente se apega a palavras e tudo bem.

Sunday 6 September 2009

carta a deus

Londres, 6 de setembro de 2009



Caro Senhor ou Senhora,


Não sei se as informações que me foram dadas a seu respeito merecem crédito. A maioria dos seus seguidores adere a religiões que tiveram origem em Abraão: judaísmo, cristianismo e islã. A maior delas é a conhecida pelo termo geral de cristianismo, que por acaso é a que conheço melhor. Portanto a maior parte do que me foi dito a seu respeito veio direta ou indiretamente através da Bíblia, cuja primeira parte é também o livro sagrado dos judeus. Essa é primeira dúvida que gostaria de esclarecer: qual dessas religiões é a sua religião? Sua resposta poderá colocar um fim a vários problemas e conflitos, como por exemplo o impasse entre israelenses e palestinos.

Se a sua religião não for nenhuma das religiões abraâmicas, por favor responda apenas à primeira pergunta e permita-me reescrever minha carta, se não lhe for demasiado inconveniente.

Se a resposta à primeira pergunta for cristianismo, ou alguma das religiões cristãs especificamente, presumirei que o Novo Testamento deve ser tratado como uma fonte genuina de informações. Não acho que seria construtivo ater-me às discrepâncias que evidentemente há entre os quatro Evangelhos. Pessoalmente, interesso-me pela questão da virgindade de Maria. Ao que tudo indica trata-se do cumprimento de uma profecia feita no Velho Testamento, em Isaías. Porém, hoje em dia aceita-se como incontroverso o fato de que um erro de tradução do original hebreu para o grego foi cometido, e acredita-se que, devido a isso, discípulos futuros de fala grega incluiram no Novo Testamento o conceito que ficou conhecido como concepção imaculada, para que a profecia fosse cumprida. É verdade que uma virgem deu à luz Jesus Cristo?

Outra pergunta se a resposta à minha primeira pergunta for cristianismo ou uma das religiões cristãs especificamente. (Perdôe minha dificuldade de compreender o mistério da Trindade, e como consequência referir-me a Jesus Cristo e ao(à) senhor(a) como a duas pessoas/entidades distintas.) Quando Jesus Cristo planeja voltar?

Gostaria agora de abordar uma área de grande interesse para mim e acredito que também para a maioria de seus seguidores. Dizem que o(a) senhor(a) é onipotente, onisciente e onipresente. Poderia por favor confirmar se esse é o caso? Se a resposta for não, por favor pule este parágrafo; mas se a resposta for sim, lhe peço que dê atenção à minha próxima pergunta, porque ela é muito importante. Eu poderia fazer essa pergunta em termos gerais, mas talvez um exemplo sirva para esclarecer a questão de maneira mais enfática. Pouco mais de um ano atrás chegou ao conhecimento do mundo o fato de que um homem austríaco chamado Josef Fritzl havia aprisionada sua filha de dezoito anos de idade no porão de sua casa, onde ela permaneceu vinte e cinco anos sem ver a luz do sol. Durante esse um quarto de século essa moça foi seguidamente estuprada por seu pai, de quem ela teve sete filhos (e um aborto), que também passaram anos presos num porão sem nunca sair, um deles morreu. O(A) senhor(a) é onisciente, e portanto sabia do que estava se passando, sobretudo dada sua onipresença, e o(a) senhor(a), sendo onipotente, poderia ter feito alguma coisa. Por quê deliberadamente deixou a moça sofrer? Sua resposta servirá para grandemente aumentar nosso conhecimento de sua mente. Como o(a) senhor(a) sabe, o que não falta nesse mundo é sofrimento.

Minha próxima pergunta vale para qualquer uma das três religiões monoteístas: judaísmo, cristianismo e islã. Por quê o(a) senhor(a) considera mulheres como seres inferiores e/ou como seres que merecem ser tratados como seres inferiores? Talvez Jesus Cristo não possa ser acusado de misoginia, mas pode, no mínimo, ser acusado de omissão.

Se a resposta à minha primeira pergunta for judaísmo, por que o(a) senhor(a) dá preferência aos judeus? Se sua religião é a religião judia, quem não for judeu deve considerar-se preterido pelo(a) senhor(a).

Se a resposta à minha primeira pergunta for judaísmo, por quê tanta violência, tanto derramamento de sangue e tanta inclemência no Velho Testamento? Aqueles horrores devem ser vistos como exemplos de bom comportamento ou mau comportamento?

Se a resposta à minha primeira pergunta for judaísmo, onde estava o(a) senhor(a) durante o Holocausto? Por quê não vingou-se da maneira usual?

Se a resposta à minha primeira pergunta for islã, será mesmo necessário que o mundo inteiro converta-se à sua religião e adote suas recomendações para merecermos sua aprovação?

O(A) senhor(a) considera fundamentalismo islâmico uma coisa boa? Ao que me parece fundamentalismo é a opção mais coerente para um muçulmano autêntico.

Essas são as perguntas que eu gostaria de fazer. Sei que sua agenda é cheia e que sua atenção precisa estar fixada em mais de oito bilhões de pessoas ao mesmo tempo vinte quatro horas por dia sete dias por semana. Mas, como dizem, ao(à) senhor(a) tudo é possível


Atenciosamente,

André

Friday 4 September 2009

o vermelho e o amarelo da cidade verde

Londres é uma cidade verde. Nenhum outro grande centro urbano no mundo tem parques tão numerosos e amplos. Onde quer que você esteja em Londres, o mais provável é que alguma grande área verde está por perto. Alguns desses parques têm um efeito mágico sobre as pessoas que vêm a eles. É uma quebra repentina. A aridez urbana, com suas fileiras de casas de tijolo, dá lugar a bosques, áreas abertas, horizontes na distância, silêncio e barulho de pássaros. E Londres é também uma cidade altamente arborizada. Portanto, quando chega o outono, um discreto show pirotécnico desenrola-se diante dos olhos acostumados da população ultra-heterogênea da cidade.

A cidade que um dia fora verde, começa a ser submetida a uma metamorfose. Primeiro as extremidades das folhas nas copas de algumas árvores tornam-se marrons, como se estivessem gangrenadas. Mas depois elas tornam-se vermelhas e amarelas, e começam a cair. As calçadas ganham um interminável tapete de folhas mortas. Mais adiante no tempo, depois que a primeira nevasca de folhas foi removida por homens com aspiradores gigantes, ou jatos de ar que amontoam os cadáveres vegetais, o amarelo de algumas árvores revela-se; e tão intensamente que é como se abajures de Itu houvessem sido instalados nas ruas. Enquanto isso a chuva cai.

A chuva cai e os dias se encurtam. É como se o sol estivesse de mal com a cidade, e não vinha mais visitar, preferindo passar longe, sem um sorriso, sem um olhar, e olhando em alguma outra direção. O céu tornando-se uma manta de lã cinza. Mas, para bons observadores, um fenômeno mais encorajador também ocorre.

Imagina você indo a algum lugar e um parque londrino te oferece um atalho. Não é mais necessário andar até a esquina lá longe e virar à esquerda e andar outro quarteirão de tijolos e argamassa. O parque tem um caminho mais curto. Chove, ou vai chover, ou acabou de parar de chover. Você passa pelo portão antigo de ferro pintado de preto. Você está dentro do parque, a ponto de compreender que a luz do sol, assim como as folhas das árvores, também andou caindo e caindo. O chão do parque está iluminado, mas a luz é um corpo morto, menos do que brasa. É luz completamente fria. A luz dos dias de verão havia caido nas folhas e descido com elas ao chão do parque. Fora como uma mudança de pele do sol. A luz do sol imerge dentro do solo. O solo engole a luz morta do sol, que continua de mal e logo irá passar ainda mais longe. Quando o inverno chegar a luz terá completamente desaparecido, junto com todas as folhas do ano. A luz que você vê é uma ilusão, uma sombra. Mas no ano que vem a luz retorna na vinda da primavera; o sol esqueceu a mágoa, e a luz também volta de dentro da terra, com todas as cores que eram brancas. Isso também acontece.

Thursday 3 September 2009

nenhum dia como outro qualquer

São quase onze e meia da manhã. Estou em meu quarto escrevendo esta primeira postagem do meu novo blog. Daqui a quarenta minutos tenho que sair, não sem antes tomar um banho. Tomarei um ônibus e saltarei em Putney, sudoeste de Londres. Da parada de ônibus caminharei vinte ou trinta minutos até um hospital. Soa simples e prosaico. Quantas pessoas neste planeta Terra irão fazer ou já fizeram algo mais ou menos idêntico no dia de hoje? Bilhões de pessoas, eu imagino. Só em Londres, entre sete e nove da manhã, milhões de pessoas banharam-se, vestiram-se, tomaram um ônibus e caminharam o que tiveram de caminhar para chegarem aos seus locais de trabalho. Por quê mencionar algo tão óbvio e comum?

Quando chegar ao hospital assinarei um livro para visitantes na recepção, depois de dizer ao mesmo senhor negro sentado atrás do mesmo balcão a mesma coisa de sempre: que sou um intérprete e tenho uma hora marcada na unidade de lesões cerebrais, e ele, como sempre, irá dar-me um crachá, e antes que eu alcance o primeiro corredor que terei de percorrer, ele irá chamar-me, porque como sempre eu terei esquecido de usar o desinfetante de mãos. Quando finalmente essa primeira etapa vagamente cômica estiver completada, eu encaminharei-me pelos corredores desse belo prédio vitoriano até a unidade de lesões cerebrais, que fica no próximo andar acima. Eu preferirei subir as escadas.

Estarei aqui para ajudar uma terapêuta ocupacional a comunicar-se com uma conterrânea minha, para quem as coisas óbvias e comuns do meu primeiro parágrafo tornaram-se impossibilidades. Uma moça que, com pouco mais de vinte anos de idade, encontra-se viva quase que por milagre. Na parede de seu quarto de hospital vêem-se imagens de alguém visivelmente feliz. Uma vida que, sem dúvida, morreu, ainda que quem a viveu siga vivendo: o acidente de moto um ano atrás teve consequências dramáticas e irreversíveis para ela. Essa moça é capaz de fazer pequeníssimos movimentos, como levantar um dedo e piscar os olhos, mas mesmo esses movimentos não são completamente controláveis por ela. Mas pelo menos ela muitas vezes consegue dizer sim através de levantar e abaixar o dedo idicador da mão direita. A esperança é que um dia seja possível estabelecer algum grau de comunicação com esse jovem e bonito ser humano.

Quando sair do hospital, tendo esquecido de devolver o crachá para o senhor negro, que também não irá lembrar de pedi-lo e dirá ‘bye bye’, caminharei para o ponto de ônibus como sempre mais intensamente convencido de minha sorte. O fato de eu existir é, em si, mais sortudo do que ganhar na loteria. O número de possíveis seres humanos que poderiam ter sido gerados em meu lugar é, para roubar (não sei se exatamente) a frase de um famoso biólogo, maior do que o número de grãos de areia em uma praia. O fato de eu estar a ponto de completar quarenta e um anos de idade me faz mais sortudo do que a grande maioria das pessoas que tiveram a chance de existir até hoje. Sempre que visito essa paciente sou forçado a lembrar dessas coisas. Reflito e concluo que qualquer reclamação que venha a sair da minha boca no futuro deveria no mínimo ser construtiva. Sinto também que tenho tantos motivos para sentir gratidão que nehuma amargura pode ser justificada. São pensamentos um pouco estranhos, com aparência de ingenuidade, mas eu os penso outra vez e acho que são verdadeiros. Voltando ao futuro, quando chegar ao ponto de onibus preferirei voltar pra casa caminhando, já que parte do percurso de uma hora e meia é um caminho de terra, às margens do Tâmisa. Nao deixa de ser uma maneira de dizer obrigado.