Thursday 10 September 2009

londres dos sebos

Charing Cross Road é uma rua conhecida por seus sebos. Um deles tornou-se título de um filme famoso: 84 Charing Cross Road. O título em português é bem menos interessante: Nunca Te Vi Sempre Te Amei. O filme, baseado em um livro que leva o mesmo título, conta a história verídica de uma mulher americana que encontra um anúncio no Saturday Review of Literarture, de um sebo em Charing Cross Road, e estando em busca de livros de literatura britânica que não consegue encontrar em Nova Iorque, contacta o sebo pela primeira vez em 1949. É o início de uma amizade de longa distância entre ela e o chefe de compras de Mark & Co, especializado em livros antigos. Quando essa mulher americana finalmente viaja a Londres para visitar o sebo é tarde demais para conhecer seu correspondente, que morreu em 1968.

No avião, a caminho de Londres, um anônimo companheiro de viagem lhe pergunta:

‘What kind of trip is it – business or pleasure?’

‘Unfinished business’

Negócio não concluido é a primeira versão em português que vem à cabeça, mas talvez negócio mal acabado seja mais adequado.

Eu me identifico ligeiramente com essa americana. Se me fosse permitida apenas uma definição de Londres, eu diria que é o melhor lugar do mundo para comprar livros de segunda mão. Os sebos de Charing Cross Road estão entre os melhores, mas os sebos de instituições de caridade, sobretudo Oxfam e Amnesty International, que podem ser encontrados em toda a cidade, são surpreendentemente ricos em títulos e bons preços.

Uns dois anos depois de minha chegada a Londres me foi confiada a tarefa de encontrar um livro chamado The Eagle and the Dove, de Vita Sackville-West. É um livro sobre as duas Teresas: Santa Teresa d’Ávila (the Eagle) e Santa Teresa de Lisieux (the Dove). A irmã mais velha de meu avô materno é uma pessoa intensamente religiosa e estava escrevendo um livro sobre as duas Teresas. Uma neta dessa tia-avó havia peneirado Nova Iorque atrás do livro de Sackville-West sem sucesso. Levando em conta que Vita Sackville-West era uma escritora inglesa, a alternativa mais óbvia era tentar encontrar o livro na Inglaterra. Eu aceitei o desafio com entusiasmo.

Primeiro tentei um sebo que não existe mais, em Holborn, de onde é possível ir a pé para Charing Cross Road. Não tendo encontrado o livro que buscava nesse sebo, que me havia sido recomendado, rumei para Charing Cross Road.

Não adiantava tentar 84 Charing Cross Road, pois não era mais uma livraria de livros de segunda mão. A maioria dos sebos na verdade está concentrada um pouco mais abaixo, perto de Leicester Square. Alguns dos sebos têm quatro andares, e para mim não estava muito claro em que categoria The Eagle and the Dove estaria. História? Religião? Biografia? Chegou um momento em que concluí que estava buscando uma agulha num palheiro. Eu não estava errado, e se não fosse minha boa sorte eu nunca teria cumprido minha missão satisfatoriamente. Já no início de minha busca eu me havia dado conta de que perguntar a livreiros sobre o livro era praticamente inútil. O livro estava fora de catálogo havia décadas, e ninguém jamais vinha em busca dele. Mas eu perguntava. E foi graças à minha determinação de seguir fazendo minha exótica pergunta que me deparei com uma resposta que foi quase como um segredo sussurrado em algum romance de caça a tesouros. O senhor careca com óculos redondos sentado atrás de uma mesa antiga em uma livraria de livros antigos e raros parecia um pouco espantado com minha pergunta:

‘Eu vi esse livro!’ ele respondeu, ‘Quinto Bookshop, na última sala subterrânea na prateleira no canto, bem no fundo’

‘Thank you very much for the information’

‘You are welcome’

E não é que dez minutos mais tarde The Eagle and the Dove estava finalmente em minhas mãos, diante de meus olhos? Uma edição de 1944 ou 1946, não lembro mais. Em uma das primeiras páginas havia um pedido de desculpas antecipado, algo como: Devido à guerra não foi possível incluir diversas fotografias que encontram-se arquivadas na França e na Espanha. Comprei o livrinho, que estava em ótimas condições. Depois de lê-lo enviei-o à Tia Graça.

Meu romance com os sebos londrinos segue tão apaixonado como nos tempos de outrora. Alguns títulos que obtive por uma fração do preço: Fables of Aesop, The Life and Opinions of Tristam Shandy, Gentleman (Laurence Sterne), Persuasion (Jane Austen), Madame Bovary (Gustave Flaubert – uma das melhores traduções para o inglês), The Heart of the Matter (Graham Greene), The Adventures of Augie March (Saul Bellow), Catch 22 (Joseph Heller), Lucky Jim (Kingsley Amis), Rabbit, Run (John Updike) e The God Delusion (Richard Dawkins). Na verdade, 80% dos meus livros – e eu devo ter uns duzentos – foram comprados em algum sebo ou em alguma loja de alguma instituição de caridade em Londres.

Minha viagem ainda é a negócio, que está longe de ser concluído e continua relativamente mal acabado. Sempre que releio algum livro que já li, às vezes mais de uma vez, sinto que minhas habilidades de leitor progrediram um pouco mais. Devo aos livros grande parte das minhas habilidades como intéprete e tradutor. Devo a eles também a maior fatia da minha visão do mundo, que é bem mais clara hoje em dia. Vale a pena.

1 comment:

  1. Filho,
    Assisti a Nunca te vi sempre te amei, aliás um belo
    filme, delicado, humano.
    Suas crônicas sobre Londres são muito gostosas de ler.
    Bjs
    Pai

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